Uma vez escrevi essa crônica, que contava alguns dos episódios da vida da minha vó. Nunca publiquei. Lembrei dela hoje. E vou compartilhar aqui porque acredito que essa história é uma inspiração. Nascida em Alegre, na roça, no interior do Espírito Santo, minha vó sempre quis estudar. Um desejo tão forte que se tornou seu propósito de vida. Ela era a caçula de seis irmãos criados por um viúva doente. A pequena Therezinha também tinha a saúde frágil. Pensa comigo: Qual era a perspectiva? Como ver o futuro? O que a fazia acreditar que era possível? Dentro dela havia algo que não a vez desistir. Uma determinação, uma forma diferente de ver a vida, uma teimosia do bem. Ela se a formou professora, apesar de começar o curso já com cinco filhos, apesar de trabalhar como merendeira em dois turnos, apesar de ter que estudar à noite o curso superior de Biologia em uma cidade vizinha. Pra mim, fica o desejo de ser como ela. Ela não desistiu. Também não vou desistir, vó.

Estamos em 1934. O mundo ainda sentia o sabor amargo da queda da bolsa de Nova York, ocorrida em 1929. O Brasil vivia o resultado do Golpe de 30, que levou Getúlio Vargas ao poder. Naquele ano, era promulgada a nova Carta, que trazia o direito das mulheres ao voto, além de direitos trabalhistas.
Em uma cidadezinha do interior do Espírito Santo, uma menina que nem sabia o que era jornal e nem tinha ideia do significado de Constituição, aos seis anos, se preparava para ir à “rua”. “Rua” era o nome do centro da cidade, onde ficava o comércio e os prédios públicos. A ela, interessa um lugar em especial: a prefeitura.
Ela foi à mala de papelão, onde guardava o único “vestido de sair” que tinha, preferencialmente usado para a missa de domingo, e com cuidado cobriu o corpo pequeno e magrinho, ainda geladinho da água do rio onde tinha acabado de tomar banho.
Vestida, penteou os cabelos finos, secos e maltratados pelo sabão feito em casa que usava para lavá-los. Pronta, ela foi avisar a mãe que iria procurar o prefeito. A mãe pensou no íntimo o que aquele tico de gente tinha para falar com o homem mais importante da cidade. Mas ousou, em uma época que esse verbo não era apropriado para mulheres, não contrariar a decisão da menina. Apenas perguntou: “Filha, mas o que você vai fazer lá?”
A menina havia acabado de terminar a pré-escola, iniciado no mundo das letras, por isso ia pedir um bolsa de estudos. Naquela cidade, as escolas de ensino fundamental eram pagas e criança da roça aprendia a assinar o nome e pronto, bastava _ não para ela.
A caçula de seis irmãos e filha de mãe viúva, quase não lembrava do pai, que morreu de tuberculose quando ela ainda nem sabia falar. Vivia em uma casinha emprestada por um tio. E por uma forma diferente de ver a vida, ao invés de se curvar, desde cedo, aprendeu a acreditar.
Foi assim que cresceu: olhando a luta daquela mãe, que, apesar de tudo, se mantinha digna e crente. Sentimento que transbordava nela ao ponto de senti-lo como um direito. Assim se sentia gente, pessoa portadora de alguma coisa, talvez a única, que ninguém poderia tirar. Menos ainda mudar. Um direito natural, intrínseco, fundamental.
Mas muitos ainda eram os limites a superar. E isso até com coisas básicas: o que comer, calçar ou vestir. Só uma coisa a manteve decidida: a ideia ela tinha. Sabia o que ia falar. Depois da conversa com a mãe, a menina franzina saiu pela rua de terra batida.
Uma hora depois, chegou à cidade. No caminho da prefeitura, viu em meio a trabalhadores braçais que calçavam uma rua, um homem de terno alinhado, que dava ordens a todos. Era o prefeito. Ela chegou perto, demorou a ser vista, mas não desistiu. Lembra que alguém a apontou. E ele a enxergou. Ela existiu!
_ Ei, senhor prefeito. Posso falar com o senhor?
_ Claro.
_ Preciso de uma bolsa de estudos. Eu quero muito estudar. Meu maior sonho é aprender a ler e escrever. Quero estudar. Mas minha mãe é viúva e pobre, não pode pagar. Quero estudar. Por isso, preciso de uma bolsa de estudos. Quero estudar. Só o senhor pode me dar.
Desafiado pela teimosia atrevida e determinada daquela menina, o prefeito pensou por alguns segundos e, encurralado pelos olhares outros que o rodeavam, disse que ela teria a bolsa. A criança voltou para casa. Feliz, contou para a mãe o que havia conquistado.
As aulas começaram, mas a professora não a deixou ficar na sala. A infância de dificuldades e doenças pesaram no desenvolvimento dela. Era pequena demais. A professora a mandou para outra sala, dos menores e do tamanho dela.
Voltando para casa, contou para a mãe. Ganhou os documentos que comprovavam a idade correta e, no outro dia, a professora não teve argumentos e logo as qualidades que a levaram a ingressar naquele lugar fizeram dela a oradora do colégio. Tinha orgulho de ouvir seu nome na chamada e responder “presente!”. Sempre que precisavam de alguém para recitar, cantar ou falar qualquer coisa, o nome daquela que nem era para estar ali saltava dos lábios dos professores.
A merenda era sempre uma canequinha de cana. A mãe acordava cedo e preparava. Ela comia escondido. Tinha vergonha. Até descobrir que ninguém conhecia aquele sabor doce, que os outros alunos passaram a disputar para trocar por pão com queijo ou salame.
Aprendia a ler, enquanto negociava com a vida as saídas para as dificuldades e vergonhas.
Ainda novinha, dividia os estudos com os bordados para fora. Com o dinheiro comprou cadernos, cortes de tecido e foi se inserindo na nova realidade. Concluiu os estudos. Depois de algumas pausas impostas pela falta de dinheiro, pela sociedade, pelo casamento e pela maternidade, formou-se professora. Deu aulas na escola em que era merendeira durante o dia, função que dava condições financeiras para ela cursar na cidade vizinha o curso superior de Biologia todas as noites.
Hoje, aposentada, é beijada na rua por seus ex-alunos. Muitos ex-alunos vividos ou saídos daquela cidadezinha do interior do Espírito Santo que tem nome Alegr. Onde o prefeito não é mais o homem mais importante e precisa dividir seu palco com outros que foram provando ao longo dos anos a relevância que sempre tiveram: mulheres, trabalhadores, negros, crianças, idosos.
A essa menina, desde sempre cidadão, mãe de cinco, avó de seis e bisavó de 4, só posso agradecer. No meu sobrenome, está o dela. Por isso, sei que há mais histórias para contar. Essa foi um delas, que sua neta queria registrar. Obrigada, vó.
Mirella Bravo é jornalista, mestre em Comunicação e Imagem, professora universitária desde 2006, pós-graduada em Estratégias de Comunicação Organizacional, MBA em Liderança e Gestão de Pessoas, especialista em Docência do Ensino Superior, acadêmica do último ano de Direito e pós-graduanda em Direito Digital.
Artigo publicado também em:
https://www.linkedin.com/pulse/era-uma-vez-menina-que-queria-estudar-homenagem-minha-mirella-bravo
Comments